sábado, 13 de setembro de 2014

Carta diária de superação de uma terça feira de outubro

Hoje resolvi te matar, recolhi tudo o que poderia me lembrar você e toquei fogo. Nosso álbum de casamento, seus porta retratos, os presentes que me destes tudo foi carbonizado, afinal, Maquiavel estava certo ao afirmar em O Príncipe que "Os fins justificavam os meios", por isso resolvi te matar para continuar vivendo. Como em um corte lacaniano, cessei meu sofrimento abruptamente no seu apogeu, para dar espaço ao catarse que mudará minha vida. Observei o fogo e o poder que ele tem de destruição, anos e anos de sorrisos, declarações, toda a vida sendo destruída em poucos segundos. A chama que ele provocou tão convidativa, pareciam braços flamejantes clamando por um abraço, quase fui entregar-me a ele num ato de aceitação de afeto, mas sou curiosa. Só não me matei até hoje pela curiosidade que tenho do que a vida me reserva. Nunca soube viver um dia de cada vez, apesar de sempre aconselhar aos que esperavam comigo nas longas horas para a terapia. Se o gato tivesse a mesma curiosidade que eu, não teria deixado que ela a matasse; é tão mais instigante esperar da vida do que da morte.
Antes que o fogo pudesse terminar seu papel funcional a ele destinado, o telefone toca, e de curiosidade quase me contradigo quando dou um pulo e saio correndo; por pouco não escorrego no álcool que chutei involuntariamente ao levantar apressurada, na esperança que no outro lado da linha fosse você, e dependendo do que quisesse de repente pudesse salvar algo que o fogo ainda não havia tocado. Toda expectativa para nada, quem me ligou foi Luisa, vice presidente da entidade, me perguntando os motivos dos adiamentos das reuniões e me perguntando por você.  Respondi, claro, que eu estava passando por uma crise existencial, mas não consegui falar para ela que você havia morrido, mas que continuava vivo. Desejei que você estivesse morto de verdade só para não ter que a explicar como eu o matei, então engoli qualquer coisa que pensei falar sobre você e o resultado foi um tímido "é" que tenho dúvidas se se fez audível. Concedi a ela depois das desculpas pelos adiantamentos todos os dados bancários e burocráticos da entidade, e concebi a ela o cargo de presidente chefe, sabendo que ela tem potencial e ama todas as crianças do projeto.
Quando desliguei o telefone confesso que escorreu uma lágrima ao ouvir a voz de outra pessoa do mundo real que não minha psiquiatra. Percebi que enquanto estou aqui procrastinando e perdendo tempo deitada na cama fingindo para mim mesma estar dormindo, as pessoas lá fora estão vivendo. Pensei de novo como você estava, mas eu te matei hoje Duarte e não posso colocar você no meu presente nem no meu futuro. O que soa um tanto quanto contraditório, porque estou perdida no espaço e no tempo e nem sei que dia é hoje, apenas sei que é uma terça-feira de outubro, mas não sei exato o dia nem a hora e não tenho interesse em saber. Voltei para os fundos da casa para olhar como estava o ritual da queima e tudo já estava como imaginei, negro.
Recebi uma carta do Sr. Oliver informando que o governo aceitou o pedido de aposentadoria que ele havia enviado e que eu continuo tendo livre acesso à escola para dar aulas se ainda quisesse, terminou ele com "Um abraço terno ao meu casal favorito, Oliver". Senti vontade de remeter a ele uma carta xingando-o por ter enviado ao governo um pedido de aposentadoria sem o meu consentimento; então depois com a cabeça fria pensei em mandar uma carta agradecendo e informando sua morte, contudo, a ele eu não saberia mesmo como explanar o seu estado morto/vivo. Como eu desejei que você estivesse morto de verdade dessa vez. Resolvi não fazer nada, se bem que poderia eu iniciar uma vida a dois com o Sr. Oliver, sabendo que ele é viúvo, não tem filhos, tem a minha idade e você sempre detestou ele por achar que ele era fascinado em mim. Pensamentos catastróficos me tomou a mente e não pensei mais na hipótese. Não daria certo, claro que não daria, me sentiria suja e acharia que seria uma traição contra você, pelas promessas que fiz de sempre te amar, não conseguiria reproduzir para outros se não unicamente para você.
Tenho esquecido de tomar os remédios e amanhã receberei a unica visita para me cobrar explicações pelo qual raspei a cabeça, o motivo da minha magreza, e do estado deplorável que me encontro. Preciso de um banho, hoje não! Estou com um mau pressentimento, resolvi te ressuscitar para te escrever esta carta já que me sinto bem em falar com você, mesmo não recebendo resposta alguma, mesmo nunca mandando minhas cartas. Você é melhor que os remédios tarja preta que ando tomando, são tantos que eles servem como meu café da manhã quando eu os lembro de tomar.
Se um dia você chegar a ler esta carta em especial, quando já estiver de volta e vê-la perdida na gaveta enquanto eu estiver fora, saiba que nunca te matei de verdade. Tudo foi uma espécie de sacrifício necessário ou autopunição por não conseguir ser ela e não ter as qualidades dela. De qualquer forma, vivo ou morto Te Amo.
De sua eterna Lourdes.

(Sequência de todas as cartas de Lourdes nas antigas publicações).

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