quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Carta de superação do dia --

Sentei no sofá com uma xícara de chá e um pouco de melancolia. No fim da tarde os últimos raios de sol que se alastram sem pressa pelos cantos da casa fazem as sombras dos móveis ficarem maior, bebo um gole e vejo na parede a refração retalhada da luz colorida do vitral da janela. Os fios alaranjados que atravessam a parte inferior da porta tomam o chão um aspecto triste, e eu só espero a claridade laranja ser interrompida por tuas pernas, ver a silhueta contraluz de teus pés fazendo longas falhas de sombra no chão da sala. Bebo mais um gole, me interrogo sobre o que faria se você viesse arrependido e pedindo para voltar, não me respondo por não me ter respostas, acho que a verdade é que não existe verdade alguma.
As dores do mundo já não tem importância, a fome das crianças da África, os intocáveis Dálits da Índia, os mortos da guerra no Oriente Médio, os reprimidos sobre ditadura da Coréia do Norte parecem ser bobagem perto do que eu sinto agora, essa descrença em mim. Bebo mais um gole do chá já frio e clamo para que caia um dilúvio, entretanto, menos escatológico e mais libertador para lavar as ruas, as avenidas, os tetos das casas, as almas dos que correm da chuva, eu não correria, pelo contrário abriria-me para ser inundada.
Sentimento já não tenho, sinto-me anestesiada, como se o liquido anestésico aplicado em mim errou o caminho e se perdeu, causando essa letargia irreversível. De fato queria sentir algo além da descrença e da desesperança que me acompanham como um encosto. Escrevo-te meu amor, pois já anoiteceu, e não olho mais a porta, já não espero mais. Escrevo-te meu amor, pois se olhasse em teus olhos não te falaria o que te escrevo, por insegurança, ou pela interrupção que você faria em cada frase minha. Te escrevo nem eu sei porque, mas te escrevo, e nem tenho necessidade que leia tudo isso, passei da fase de te escrever achando que um dia sentirá remorso de ter ido sem responder minhas indagações. Mas continuo a te escrever.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Prefácio

Quando um homem é enganado por uma mulher, só há uma maneira de esquecê-la e a alternativa chama-se álcool, a não ser que seja este homem um escritor. Decepções, quantas pessoas já não sentaram no sofá no meio da madrugada com as mãos gélidas sobre o rosto? Posso afirmar que o meio mais fácil para esquecer é acreditar que lembrará pela ultima vez, este livro é o processo de ultima lembrança que eternizarei pela personagem Lourdes Maria.
Nessa vida agitada de olhares tão velozes, já parei muito para olhar para os outros com o olhar cuidadoso. A vida nos obriga a não parar nunca, devemos correr, zarpar. Para todos cujo fiz questão de contradizer os ensinamentos da vida, não me arrependo, na verdade me arrependo apenas de não perceber que enquanto estive parado, olhando com os olhos preguiçosos e atentos para os que eu achava que deveria, a vida corria e depressa. Nunca tive maturidade para perceber o recíproco, quanto tempo perdi a amar pessoas que na primeira oportunidade me deram as costas, saíram de minha vida sem mandar notícias. Não me arrependo de amá-las, nem de ter as olhado com os olhos largos de tempo, mas de não perceber a tempo que não era mútuo. Quantas dores poderia ter evitado, noites sem dormir, comidas sem comer, vida temporariamente sem viver? Mas é do meu ser, genético talvez, acreditar nas pessoas como se elas fizessem o que eu faria, sentir o que eu sentiria, e toda vez quando me encontro assim nesse estado, aprendo que não é desta maneira que funciona, até vir a próxima pessoa em minha vida para eu esquecer de qualquer coisa que tenha aprendido com minha própria experiencia errante. Parece ser um ciclo vicioso, uma espécie de moto contínuo de decepções, quebra de cara e superação, a tríade da minha vida gauche. Poderia eu fazer um livro intitulado "Coisas que devemos saber sem precisar passarmos" e teria páginas e dicas consideráveis, cruciais, sou um bom teórico, enquanto na prática permitiria que qualquer possível leitor que me reconhecesse na rua apedrejasse-me sem repudiar tal atitude. As vezes quando paro, percebo que posso ser duas coisas, ou burro, ou ingênuo, prefiro acreditar piamente que não seja a primeira opção, mas não a descarto, pois condecorar-me com o título de ingênuo soa um pouco "vitimoso" demais, então fico oscilando, ora burro, ora ingênuo. Ainda me assusto muito por ainda acreditar nas pessoas, por não ter desenvolvido misantropia - uma espécie de psicose repudiante de seres humanos ou algo assim. Pelas inúmeras vezes que me decepcionei, e que minhas expectativas se auto-destruíram subitamente, poderia fazer um livro intitulado "Ainda cabe mais uma decepção" onde eu mostro que ser decepcionado é parte do desenvolvimento humano, algo como: Nascer, decepção, crescer, decepção, desenvolver a decepção, e morrer decepcionado - criei essa tese e este livro depois da ultima que tive. Afirmo ainda que a desilusão é vital, claro! Quem nunca foi desenganado não vive, apenas fantasia.
Porém, não é autobiográfico o que você lerá a partir das próximas páginas, apesar de ter forte influência de pessoas que me cercaram, é apenas uma mera coincidência. Principalmente a técnica de enfermagem que bagunçou minha vida D.F.G.

Carta diária de superação do dia 22 de agosto

Sonhei contigo, usei a palavra sonho apesar de ter sido mesmo um pesadelo. Você vinha até a nossa casa com sua cara lavada cinicamente escupida por traços do mínimo de caráter. Parecia um pavão mostrando suas voluptuosas penas, andava exibindo o peito farto de ar, orgulhoso de se mostrar bem. Chamou meu nome e eu abri a porta, o que faria o mesmo fosse realidade. Deu-me um abraço apertado como se não houvesse saído de minha vida para morar com a garota, tornou-se de lado a mim e envolveu seu braço no meu lateralmente, fazendo com que ficássemos lado a lado e me impulsionou para que andássemos. 
O que eu gosto nos sonhos, é que podemos ver situações que não aconteceriam ou que aconteceriam de perspectiva diferente, como uma espécie de plano subjetivo de um ângulo privilegiado do sonhador, encarando a si mesmo como um telespectador que assiste tudo sem ter lido anteriormente a sinopse da situação. E eu estava lá, ao seu lado envolvida por seu braço esquerdo sobre minhas costas e sua mão descansando em meu quadril me puxando para o que viria a ser uma conversa. Visto em primeiro plano em plano-sequência. Sentou-me na cadeira da sala de jantar e começou um intenso interrogatório sobre minha vida , tentou sugar de mim todas as informações possíveis, e eu me vi ali sentada a sua frente mentindo para todas as perguntas. Quanta vontade eu tive como espectadora de tomar o meu lugar no sonho e dar-lhe um tapa e perguntar o motivo de ter me abandonado, o motivo de estar tão bem em cima do meu sofrimento, o motivo de não ter me dado motivo algum. Mas bons dramas são assim mesmo, sempre tem uma cena no meio do filme que nos faz sentimos vontade de encarnar o personagem na situação limite para fazer o que achamos que faríamos, transformando um "A Summer Story" de Piers Haggard em um "Kill Bill" de Tarantino. E fiquei encarando você ali, esperando que soltasse algum desejo em reatar o que tivemos, de viés, só perguntava e demonstrava subliminalmente o quão estava bem sem mim. 
Igual aqueles suspenses chatos, que enquanto você assiste a mocinha indefesa cantarolando no banho fica gritando que o vilão está logo atrás da cortina com uma faca, e que vai atacar-lhe por já começar aquela musica repetitiva e frenética, eu gritei para mim no sonho: "Ele não te ama mais! Vai te dar outra facada, não ouve a música?" Mas não me ouvi, e continuei cantarolando mentalmente que queria que você me desse algum sinal, de contrapartida, me sugeriu que continuássemos amigos. Provavelmente se mais pessoas estivessem na minha perspectiva assistindo meu sonho já imaginariam o que aconteceria. Por que diabos mocinhas tem que serem tão tolas? Talvez preencham folhas de currículos com situações de incapacidade de autossuficiência para serem contratadas como uma boa atriz. 
Você foi embora mais uma vez sem me permitir uma resposta plausível da situação, enfincando ainda mais a faca anteriormente cravada enquanto realidade. Não entendo porque não conseguimos acordar quando o sonho se torna um pesadelo, deveríamos ter uma mandala interna. Ficou mais uma vez teu cheiro impregnado na casa, depois que o drama tornou-se terror consegui despertar e senti-lo como se deveras estivesse passado por aqui. Esse é o único problema de perfumes, quando você vai teu cheiro fica. 
Parece que estou em uma espécie de jogo de casas de tabuleiro, quando pareço estar caminhando bem, pegando cartas que me levam para frente, ganhando bônus, conseguindo viver, me deparo com alguma discrepância que me remeta a você, o que me faz retroceder algumas casas. A unica coisa que queria mesmo era não ter cruzado em tua vida, se soubesse que o fim seria tão árduo assim, não teria aceitado entrar no jogo com você.

Lourdes.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

não vim falar de adeus

Viviam eles uma vida de reticências, constantes reticências. De tanto tentar por um ponto final no que tinham, acabaram vivendo assim... Ora se amavam, ora se odiavam. Carregavam esse desgaste de não conseguir ser o que eram de verdade, de não fazer o que queriam de verdade. Sentiam-se impotentes para as grandes coisas da vida que não haviam respostas. O céu causava neles fortes dores de cabeça por não conseguir abstrair a ideia de infinito, tudo que pudesse ser infinito lhe causavam, infinito mesmo eles só encaixavam em relacionamento. Acreditavam que cada tentativa de ponto final poderia ser puxada um pequeno traço para forma-se uma virgula, e faziam vírgulas e mais virgulas. Até que um momento da vida eles pararam para analisar se era mesmo que queriam fazer, se era mesmo o que estava causando a felicidade, e perceberam que não. O ponto final veio quase que consensual, desde sempre um queria e outro não, o outro queria e o um não, mas agora subitamente surgiu no momento exato no pensamento dos dois, que logo desceu para os lábios fazendo disso palavras. Desta vez não houve dor, não houve brigas, não houve xingamentos, a aceitação do fim veio para ambos quase que como um suprimento divino. Recolheu ele sua vida, ela fez igual, e deram-se as costas. O adeus foi entregue como a própria expressão diz, à Deus.

conselhos que se dão de graça

Sim, apesar dos grandes pesares, acredito em amor verdadeiro. Faço parte de um pequeno grupo seleto da população mundial que ainda acredita. Como diria a escritora Fernanda Young: "As pessoas terminam relacionamentos porque querem grandes excitações" e eu ainda não achei uma pessoa que possa me orgulhar de sentir que façamos parte de uma estranha exceção. O amor comum tem data de validade escondida em um rótulo difícil de ser encontrado. Por ventura caso achemos tal informação, devemos olhar todos os dias quanto tempo falta para seu vencimento, para não nos pegarmos distraidamente por vencidos.
Os radicais não procuram tal amor eterno até que já tenham se divertido com todos que passaram por sua vida. Pegam-se na velhice sozinhos, sem ninguém para compactuar a diária e árdua tarefa da idade avançada ou com um amor não ideal, que poderia ter sido aquela terceira ou quarta pessoa cujo não deu muita relevância - que inegavelmente amou profundamente, mas não conseguiu em meio a tanta aventura da vida, unir-se a ela.
As oportunidades de um novo relacionamento passam por nossas vidas e devemos agarrar com unhas e dentes, mas devemos ter a sagacidade de saber se vale a pena ou não. Nosso ponto fraco nos encontra sem que estejamos esperando e derruba qualquer ideia que tivemos de vida feliz ao lado de uma pessoa errada. A astúcia da escolha deve ser bem apurada, bem analisada; como um cadáver encontrado nos arredores de um rio e cabe a você como um bom profissional forense garantir seu emprego descobrindo como se deu o óbito.
Deixar uma pessoa portanto para unir-se a outra é o maior ato de egoismo do mundo, que não tem outra finalidade se não utilizar dos métodos de tortura da idade média em um contexto atual e com ferramentas atuais (a metáfora apenas se encaixa quando se há amor na perspectiva do deixado, pois se não houver nenhum resquício fraternal ele sairá intacto e sem nenhum arranhão aparente). Aconselho então a não entrar em nenhum relacionamento apostando todas as fichas, fazendo planos para um futuro distante com o companheiro recém conhecido ou entrando de cabeça - você correrá um grande risco de bater com ela em uma pessoa rasa.
Amar é uma dança de difíceis escalas, deve-se antes de tudo aprender todos os passos e conhecer bem o parceiro que se queira bailar. Amar é como um jogo de xadrez, se o seu competidor for mais ardiloso e se permitir você entradas para um rápido xeque-mate, você perderá rapidamente sua rainha. Amor verdadeiro é como a sorte, muitos não acreditam e tem, muitos não tem e acreditam. Quando uma pessoa tem e acredita, a sorte faz-se amor.

C.A.

sábado, 13 de setembro de 2014

carta SOS

desculpa, eu sei que já pedir desculpas, todas as minhas cartas eu peço desculpa, desculpa. é que eu estou com um buraco negro em meu peito que está sugando tudo que há em mim. A árvore que você plantou no meu coração já deu flores e frutos e os galhos já posso ver saindo por minha boca eo meu nariz. eu estou perdidas, tenho andado em círculos, tenho ouvido vozes tenho caído no banheiro esqueci da virgula ali desculpa; me pedoa?! os remèdio estão fazendo eu dormir sem querer, estou com tanto medo e sozinha e sozinha. passo o dia todo ouvindo a tua voz na caixa postal que voce mim deixo um dia enquando viajava, e viajava. abraço meu travesseiro fumo o teu cigarro, cheiro teu perfume, estou contraria.
vao me internar no hospital psiquiátrico, eu queria ter um ataque cardiaco pra te vê e te dizer que você e tudo pra mim. vão me internar no hospital psiquiatrico não deixa não? você me abandonou ne? eu sou uma inutil ne? existe um no na minha garganta e um galho enorme. posso ouvi tua voz de novo. você esta aqui agora comigo e está feliz, esta feliz. oi meu amor, com tão as coisas; estou com saudade enorme de voce, volto ainda antes da sua apresentaçao no museu, aqui ta chato sem voce, e eu so penso em voce. te amo de seu eterno duarte; voce me diz no recado no ano passado, achei aqui. eu sou maluca? nao consigo escrever, nao consigo. ouvi tua voz e fiquei sem saber o que falar o que dizer o que! to dopada o sono ta me carregando socorro meu amor nao deixa me levar, nao dexa o sono o hospital psiquiatrico. eu te a

Carta diária de superação de uma terça feira de outubro

Hoje resolvi te matar, recolhi tudo o que poderia me lembrar você e toquei fogo. Nosso álbum de casamento, seus porta retratos, os presentes que me destes tudo foi carbonizado, afinal, Maquiavel estava certo ao afirmar em O Príncipe que "Os fins justificavam os meios", por isso resolvi te matar para continuar vivendo. Como em um corte lacaniano, cessei meu sofrimento abruptamente no seu apogeu, para dar espaço ao catarse que mudará minha vida. Observei o fogo e o poder que ele tem de destruição, anos e anos de sorrisos, declarações, toda a vida sendo destruída em poucos segundos. A chama que ele provocou tão convidativa, pareciam braços flamejantes clamando por um abraço, quase fui entregar-me a ele num ato de aceitação de afeto, mas sou curiosa. Só não me matei até hoje pela curiosidade que tenho do que a vida me reserva. Nunca soube viver um dia de cada vez, apesar de sempre aconselhar aos que esperavam comigo nas longas horas para a terapia. Se o gato tivesse a mesma curiosidade que eu, não teria deixado que ela a matasse; é tão mais instigante esperar da vida do que da morte.
Antes que o fogo pudesse terminar seu papel funcional a ele destinado, o telefone toca, e de curiosidade quase me contradigo quando dou um pulo e saio correndo; por pouco não escorrego no álcool que chutei involuntariamente ao levantar apressurada, na esperança que no outro lado da linha fosse você, e dependendo do que quisesse de repente pudesse salvar algo que o fogo ainda não havia tocado. Toda expectativa para nada, quem me ligou foi Luisa, vice presidente da entidade, me perguntando os motivos dos adiamentos das reuniões e me perguntando por você.  Respondi, claro, que eu estava passando por uma crise existencial, mas não consegui falar para ela que você havia morrido, mas que continuava vivo. Desejei que você estivesse morto de verdade só para não ter que a explicar como eu o matei, então engoli qualquer coisa que pensei falar sobre você e o resultado foi um tímido "é" que tenho dúvidas se se fez audível. Concedi a ela depois das desculpas pelos adiantamentos todos os dados bancários e burocráticos da entidade, e concebi a ela o cargo de presidente chefe, sabendo que ela tem potencial e ama todas as crianças do projeto.
Quando desliguei o telefone confesso que escorreu uma lágrima ao ouvir a voz de outra pessoa do mundo real que não minha psiquiatra. Percebi que enquanto estou aqui procrastinando e perdendo tempo deitada na cama fingindo para mim mesma estar dormindo, as pessoas lá fora estão vivendo. Pensei de novo como você estava, mas eu te matei hoje Duarte e não posso colocar você no meu presente nem no meu futuro. O que soa um tanto quanto contraditório, porque estou perdida no espaço e no tempo e nem sei que dia é hoje, apenas sei que é uma terça-feira de outubro, mas não sei exato o dia nem a hora e não tenho interesse em saber. Voltei para os fundos da casa para olhar como estava o ritual da queima e tudo já estava como imaginei, negro.
Recebi uma carta do Sr. Oliver informando que o governo aceitou o pedido de aposentadoria que ele havia enviado e que eu continuo tendo livre acesso à escola para dar aulas se ainda quisesse, terminou ele com "Um abraço terno ao meu casal favorito, Oliver". Senti vontade de remeter a ele uma carta xingando-o por ter enviado ao governo um pedido de aposentadoria sem o meu consentimento; então depois com a cabeça fria pensei em mandar uma carta agradecendo e informando sua morte, contudo, a ele eu não saberia mesmo como explanar o seu estado morto/vivo. Como eu desejei que você estivesse morto de verdade dessa vez. Resolvi não fazer nada, se bem que poderia eu iniciar uma vida a dois com o Sr. Oliver, sabendo que ele é viúvo, não tem filhos, tem a minha idade e você sempre detestou ele por achar que ele era fascinado em mim. Pensamentos catastróficos me tomou a mente e não pensei mais na hipótese. Não daria certo, claro que não daria, me sentiria suja e acharia que seria uma traição contra você, pelas promessas que fiz de sempre te amar, não conseguiria reproduzir para outros se não unicamente para você.
Tenho esquecido de tomar os remédios e amanhã receberei a unica visita para me cobrar explicações pelo qual raspei a cabeça, o motivo da minha magreza, e do estado deplorável que me encontro. Preciso de um banho, hoje não! Estou com um mau pressentimento, resolvi te ressuscitar para te escrever esta carta já que me sinto bem em falar com você, mesmo não recebendo resposta alguma, mesmo nunca mandando minhas cartas. Você é melhor que os remédios tarja preta que ando tomando, são tantos que eles servem como meu café da manhã quando eu os lembro de tomar.
Se um dia você chegar a ler esta carta em especial, quando já estiver de volta e vê-la perdida na gaveta enquanto eu estiver fora, saiba que nunca te matei de verdade. Tudo foi uma espécie de sacrifício necessário ou autopunição por não conseguir ser ela e não ter as qualidades dela. De qualquer forma, vivo ou morto Te Amo.
De sua eterna Lourdes.

(Sequência de todas as cartas de Lourdes nas antigas publicações).

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

ultima oração

Quero adentrar em teu pensamento e fazer do teu corpo minha casa,
quero ser teu hospedeiro!
Vou te tirar o sossego e nunca te dar calma
transbordarmo-nos sejas pelo teu nome ou tua carne.
Venhas para o meu aconchego e faça dele tua cama
e seja feita à nossa vontade, não gritas, clama!
Dei-me o teu pão que cada dia me alimenta
me sustenta!
Deixas eu ser a tentação que te tira o sono,
não me perdoa como não te perdoo!
Tira minha roupa e chupa-me a língua
lambe-me inteiro!
E onde for calma
Faz-se furacão
E onde for tristeza
Faz-se ventura
E onde for o não
Faz-se o obvio
E onde não for nada
Nada faz!

Amem.

Carlos Antônio

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

apenas em ti.

se fosse um pássaro,
não andaria
ó andorinha
ó andorinha

um dia mudo essa rota
ó gaivota
ó gaivota

se meu canto fosse um sol,
nem gasto meu espanhol
ó rouxinol
ó rouxinol

conhecer o mundo todo quiçá
ó carcará
ó carcará

e se um dia, deprimir-me a tal,
nunca mais serei igual
ó pardal
ó pardal

carregarei comigo este brasão
ó gavião
ó gavião

mas confiarei apenas em ti,
e hás de me trair
ó bem-te-vi
ó bem-te-vi

C.A.

Eu não gosto de escadas

Acho muito interessante as contradições que criamos contra nós mesmos ao passar dos anos. Eu por exemplo adorava escadas, achava incrível a harmonia dos degraus, do conceito/encaixe que elas serviam de nos fazer ascender. Achava filosófico, interpretável, poético. Subia e descia as escadas só para subir novamente e ter a sensação mágica de transcender, através de passos verticais angulares. Até que um dia nos mudamos para uma casa com escadas, na mesma época trocaram-me de escola - para uma espécie de Liceu da Grécia antiga - com infindáveis escadas, subia-se para fazer quaisquer coisas. Ainda não suficiente, me matricularam em um curso de inglês que era um andar abaixo da cobertura de um prédio comercial com elevador esquecido de ser consertado. Não é tão difícil saber o que se aconteceu com a minha antiga ideia abstrata de escadas não é? Passei por achá-las inúteis, e que não serviam para nada mais que nos levar de um lugar a outro por meio de nosso próprio esforço, tão arcaico, tão demente.

C.A.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Sequência das cartas de Lourdes Maria

---------------------------------------------------------PREFÁCIO-----------------------------------------------

Quando um homem é enganado por uma mulher, só há uma maneira de esquecê-la e a alternativa chama-se álcool, a não ser que seja este homem um escritor. Decepções, quantas pessoas já não sentaram no sofá no meio da madrugada com as mãos gélidas sobre o rosto? Posso afirmar que o meio mais fácil para esquecer é acreditar que lembrará pela ultima vez, este livro é o processo de ultima lembrança que eternizarei pela personagem Lourdes Maria.
Nessa vida agitada de olhares tão velozes, já parei muito para olhar para os outros com o olhar cuidadoso. A vida nos obriga a não parar nunca, devemos correr, zarpar. Para todos cujo fiz questão de contradizer os ensinamentos da vida, não me arrependo, na verdade me arrependo apenas de não perceber que enquanto estive parado, olhando com os olhos preguiçosos e atentos para os que eu achava que deveria, a vida corria e depressa. Nunca tive maturidade para perceber o recíproco, quanto tempo perdi a amar pessoas que na primeira oportunidade me deram as costas, saíram de minha vida sem mandar notícias. Não me arrependo de amá-las, nem de ter as olhado com os olhos largos de tempo, mas de não perceber a tempo que não era mútuo. Quantas dores poderia ter evitado, noites sem dormir, comidas sem comer, vida temporariamente sem viver? Mas é do meu ser, genético talvez, acreditar nas pessoas como se elas fizessem o que eu faria, sentir o que eu sentiria, e toda vez quando me encontro assim nesse estado, aprendo que não é desta maneira que funciona, até vir a próxima pessoa em minha vida para eu esquecer de qualquer coisa que tenha aprendido com minha própria experiencia errante. Parece ser um ciclo vicioso, uma espécie de moto contínuo de decepções, quebra de cara e superação, a tríade da minha vida gauche. Poderia eu fazer um livro intitulado "Coisas que devemos saber sem precisar passarmos" e teria páginas e dicas consideráveis, cruciais, sou um bom teórico, enquanto na prática permitiria que qualquer possível leitor que me reconhecesse na rua apedrejasse-me sem repudiar tal atitude. As vezes quando paro, percebo que posso ser duas coisas, ou burro, ou ingênuo, prefiro acreditar piamente que não seja a primeira opção, mas não a descarto, pois condecorar-me com o título de ingênuo soa um pouco "vitimoso" demais, então fico oscilando, ora burro, ora ingênuo. Ainda me assusto muito por ainda acreditar nas pessoas, por não ter desenvolvido misantropia - uma espécie de psicose repudiante de seres humanos ou algo assim. Pelas inúmeras vezes que me decepcionei, e que minhas expectativas se auto-destruíram subitamente, poderia fazer um livro intitulado "Ainda cabe mais uma decepção" onde eu mostro que ser decepcionado é parte do desenvolvimento humano, algo como: Nascer, decepção, crescer, decepção, desenvolver a decepção, e morrer decepcionado - criei essa tese e este livro depois da ultima que tive. Afirmo ainda que a desilusão é vital, claro! Quem nunca foi desenganado não vive, apenas fantasia.
Porém, não é autobiográfico o que você lerá a partir das próximas páginas, apesar de ter forte influência de pessoas que me cercaram, é apenas uma mera coincidência. Principalmente a técnica de enfermagem que bagunçou minha vida D.F.G.            


   ****Mensagem de celular não respondida e desabafo para ninguém do dia 14 de agosto****

Duarte Moura, 44, Médico bem sucedido e casado com Lourdes Maria, 42, Artista Plástica renomada. Há 25 anos Duarte e Lourdes vivem um casamento conturbado, aparentemente sólido para os que os cercam, mas sustentado por uma linha tênue que está prestes a partir-se. Ele é racional e quase não tem tempo para a casa, faz plantão e quando não trabalha dorme no hospital , extremamente rígido com sua movimentação financeira, nunca pretendeu ter filhos. Ela é emocional e quase não sai de casa, vai apenas quatro vezes por semana à escola na qual dá aula, sempre quis ter muitos filhos, por isso, é diretora de uma entidade filantrópica de crianças carentes cujo metade do seu dinheiro é destinado. Ele é do signo de Áries e ela do signo de Libra, ele gosta de praia e badalação da High Society, e ela de locais frios e ternos, ele gosta de Caetano, ela de Chico e tantas outras diferenças que estiveram na base das discussões mais sórdidas. Mas a diferença que mais a machucava era saber que ele não era de amar e ela era de amar pra vida toda.
Como ele imaginou desde o primeiro ano do casamento, o relacionamento chegou ao fim. Ele se apaixonou por uma técnica de enfermagem bem mais jovem que ele, e que compartilhavam de mesmos pensamentos. Logo pensou em sair de casa e sustentar o namoro com a jovem.
Como ela nunca imaginou na vida, o relacionamento chegou ao fim. Pensou logo em abrir mão de alguns pensamentos que iam de encontro aos dele. Estranhamente se apaixonou ainda mais, quando foi posto para ela a possibilidade que ele não voltaria para casa. E foi rigorosamente assim que deu-se o fim:
Duarte chega em casa no dia 13 de agosto, às 10h23min10s, (Como eu sei com exatidão? Ora, quando entrou em sua casa esqueceu a porta aberta, que logo fechou-se com um forte vento, causando então uma pressão seguida de um pequeno vácuo, que fez com que o relógio digital que estava posto na parede da sala caísse. Estava lá agora, no chão para quem quisesse ver, com o visor rachado, mas ainda visível, as horas que a vida de Lourdes M. começaria por mudar) ela saíra bem cedo, pois era dia de prova e tinha que revisar algumas questões antes que passasse aos seus alunos, estavam estudando sobre a vida e a obra de Vincent van Gogh.
Ele direciona-se então sua atenção ao quarto, sobe as escadas e entra no closet, separa suas roupas, todas, sem exceção, seus sapatos, suas cuecas. Passa pelo banheiro pega sua escova, seu protetor bucal noturno, seu roupão e coloca em uma grande mala. Desce as escadas, vai à sala, recolhe todos os livros coloca todos em caixas. Pega seus óculos, seu notebook, sua vida de casado e vai embora, apanhando suas correspondências e deixando antes um pequeno bilhete cujo ficaria latejando cada palavra na cabeça de Lourdes por um bom tempo:
"O amor que brotara em seu coração, não foi mais o capricho súbito e mutável da garotinha de dezessete anos que conheci, mas uma paixão arrebatadora e ardente de uma mulher forte e de temperamento impetuoso. Conheci uma jovem que partilha de mesmos ideais que a mim, temos muitas coisas em comum, percebo que ela possui todas as características que sempre procurei em uma mulher. Estou sentindo-me como quando me apaixonei por minha primeira namorada. Morarei com ela, não consigo mais viver uma vida de subterfúgio, espero que você fique bem, que me desculpe e me entenda." assinou ao fim do papel com alivio, o garrancho de sua assinatura. Não hesitou em olhar para trás quando colocou tudo em seu carro e foi embora.
Lourdes chegou às 12h40min30s, (Você deve estar se perguntando como desta vez eu sei? Simples, Lourdes tem TOC e antes de entrar em qualquer local, ela olha seu relógio de pulso. Só entra ou sai dos locais se as horas forem redondas, ou se forem quebradas com o cinco na casa dos minutos e/ou segundos. Teve que acostumar-se relutantemente com essa segunda regra depois que percebeu que esperar para entrar ou sair dos locais era meio chato, quando tinha-se que esperar dez minutos as vezes, e permitiu a quebra com a ajuda da sua terapeuta para que aceitasse o cinco) ela deu um largo sorriso ao sentir o cheiro de seu perfume na porta quando abaixou-se para pegar a chave debaixo do tapete, achou que ele almoçaria com ela e não pôde avisar, pensou enquanto ainda olhava o relógio. Entrou depressa quando o visor mostrou a hora descrita e que ela esperava ansiosa. Fechou a porta com calma, e quando virou-se, viu a estante quase vazia, e na mesa da sala um pequeno papel. Ela sabia exatamente o que era, pelo poder de percepção já imaginara até o que se tinha no bilhete. Masoquista que é, correu com esperança de estar errada, mesmo sabendo que não gosta de ter esperança e que quase nunca estava errada. Afogou-se ao fim do bilhete aos prantos. Quando mais jovem leu uma poesia que dizia que quando estamos tristes devemos chorar um mar inteiro, depois devemos chorar os navios, os barcos, os peixes e os pescadores. E foi isso que ela fez, desmarcou a reunião que tinha mais tarde com comissão da entidade para arrecadar fundos com grandes empresários, e debulhou-se em lágrimas, no sofá mesmo, não aguentaria encarar o quarto, e de tão cansada depois de horas chorando todo um cenário marítimo acabou dormindo.
Acordou depois de um tempo sem entender bem o motivo de estar deitada na sala, mas infelizmente, foi tomando consciência gradativamente. Já não conseguiria chorar, já havia navegado demais. Levantou com dificuldade e foi então ao quarto descrente. Enquanto subia as escadas lembrou de todos os anos juntos, todas as festas, todos os encantos, todas as discussões e as reconciliações que eram tão viscerais que faziam as escadas ficarem pequenas quando ele subia beijando-a e tirando sua roupa. Hoje a escada parece maior e a roupa ela tira sozinha porque quer dormir nua. Evitou olhar para as paredes, evitou olhar para o lado dele na cama, evitou olhar para qualquer coisa que pudesse lembrar dele - mal sabia ela que sonharia a noite toda com ele. Pensamentos suicidas rondaram sobre sua mente, sempre havia lhe dito que não conseguiria viver sem a presença dele na vida dela, e queria mostrar que sempre falou a verdade. Mas pensou nas crianças que deixaria, nos alunos que ensinava e principalmente, nele. Poderia ela viver sem ele, mas nunca sem ele, se é que me entendem. (Abro este parêntese para você leitor mais minucioso de compreensão. Mesmo achando que as pessoas que entenderam, foram as que passaram por um fato parecido como este, e os que não, devam abandonar por aqui a leitura e ler posteriormente, quando o amadurecimento das circunstâncias fizerem você perceber, que nem tudo precisa necessariamente de uma compreensão plausível. Mas aqui vai, quando eu disse: "Poderia viver sem ele" me refiro a sua ausência carnal, e "mas nunca sem ele" me refiro a ausência espiritual, já que se ela colocasse fim em sua vida, morreria na dúvida se um dia poderia tê-lo de volta, e seu espirito vagaria sozinho).

(Exatamente na madrugada após o ocorrido)
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"De repente dei pra fantasiar. Cada barulho na porta, cada passo na escada, cada voz ao longe achei que era você voltando para mim, porque eu queria voltar pra você! Mas como eu já tinha voltado para você uma vez antes, quando você não queria voltar e eu fiquei aos teus pés, te implorando carinho e o mínimo de atenção no maior ato de submissão que se possa existir. Resolvi te dar um tempo para pensar o quanto eu faço falta, e para tirar-me a dúvida se eu faço mesmo falta. Entretanto o que eu mais quero agora, é que você volte mesmo que eu não faça falta, mesmo que eu me submeta a ser submissa todos os dias, mesmo dormindo aos teu pés para não te deixar mais ir. Hoje, volta agora! Eu sei que está tarde quase a amanhecer, mas é que eu queria tanto voltar mesmo contigo, que passei a ficar com medo de você não mais voltar, ou só voltar quando eu já não quiser mais voltar."
                                                                              ---
Escreveu em seu celular e enviou para Duarte, sem nenhuma resistência. Esperou a resposta encarando o celular, imaginando que posição ele poderia estar fazendo com ela. Ficou imaginando qual a quantidade de trepada que eles já deram no intervalo de tempo do envio da mensagem até o dado momento da espera. Depois pensou que ele poderia estar dormindo em algum hotel sem ela, e que eles se veriam somente de manhã e é inútil ela perder tempo sem dormir se preocupando com o incerto. Não se preocupou mais com isso, mas não dormiu, ficou alternando entre o celular e o bilhete que ele deixara. Ficou imaginando quais características que a jovem causadora da discórdia tinha que ela não tinha, estipulou algumas e se culpou por não tê-las, se culpou por não tê-lo, se culpou por não sê-la. A tristeza abriu espaço para a culpa ser companhia da madrugada insone.
Resolveu beber água, queria se purificar, acreditou que quanto mais água bebesse, mais limpa internamente ficaria. Abriu o frigobar e pegou duas águas que bebeu rapidamente. Estava desidratada, e estava com muita fome também, entretanto, saberia que não conseguiria comer, sentia agora um aperto no peito e uma falta de ar. Logo clareou e ela precisava ir à escola dar aula, indagou Deus por não ter criado "o dia do não viver" onde a pessoa programaria quantas horas decidisse não encarar da vida e ficaria em Stand By, não resolveria o problema, mas não pioraria, o que já ajuda. Contudo agradeceu com certa ironia pelo dia, e ficou feliz por hoje ser só uma turma.

Lourdes não anda de carro por um trauma que sofreu há 11 anos, ela estava aprendendo a dirigir quando sem perceber, acelera um sinal vermelho e quase atropela um senhora que atravessava a faixa de pedestre, chegou a brecar nas pernas da idosa. Ocasionou nela um surto de Síndrome de Pânico inesperado, e nele ocasionou um surto de raiva. O caminho de volta todo Duarte assumiu o comando do volante enquanto gritava exasperado com Lourdes, enquanto ela tremia e chorava como uma criança que acabara por receber a notícia do óbito de seus pais. Então, naquele dia ela contraiu uma aversão ao volante, a caminhada tornou-se seu meio de locomoção, ou carro, desde que ela não tenha que assumir a direção.
Chega na escola e não consulta as horas para saber se estavam "redondas", não obedecer os rituais causam-lhe sarnas e nevralgias. Com óculos escuro para esconder o estado de luto encara a sala lotada.
Passou uma atividade qualquer e sentou-se abrindo seu diário, com uma caneta rabiscou como desabafo para si mesmo:

"Neste peito morto
carrego um coração que não mais bate
apenas tolera seu papel funcional
relutantemente

Não me arriscaria em afirmar que vivo
tenho arrastado um corpo sem vida
por onde acho que quero ir

Me afogo no vazio que você me deixou
e que você nem sequer notou
nem sequer me olhou
nem sequer sorriu
e saiu"

   **********************Carta diária de superação do dia 15 de agosto***********************

Antes que saísse da escola correndo para não chorar pelos corredores, o diretor, Sr. Oliver chama-a em sua sala. Se houvesse chamado ela, qualquer outra pessoa, deveria ter dado uma desculpa sem nexo e continuaria a andar, mas o Sr. Oliver sempre lhe fora muito atencioso, e além do mais, ele é um colaborador fiel da entidade, seu patrão e amigo. Desviou seu rumo ao sentido contrário e foi ao encontro dele. Estava frio e ela só pensava em ir para casa. Entrou em sua sala e o cumprimentou tentando deixar a voz não trêmula:
 - Bom dia senhor Oliver, me deram o recado no corredor de que você precisaria falar comigo. Pois não?
 - Bom dia Lourdes, quantas vezes tenho que dizer para você não me chamar de senhor? - sorriu. Pode me chamar apenas de Oliver, temos intimidade o bastante para isso, afinal de contas, sou o padrinho do seu casamento não é mesmo? - Lourdes corou ao ouvir a frase, engoliu a seco o choro que pensou que viria-  Deixemos essas classificações de superioridade de lado, vamos falar de você. Tenho visto que não costuma tirar férias desde o ano retrasado. Então, antes de sua permissão falei com o Sr. Bento F. se poderia tomar seu lugar por alguns dias, sugiro que você descanse, dedique seu tempo a entidade, aos seus trabalhos artísticos e a você. Não vou estipular tempo, quando você quiser voltar me ligue avisando, será muito bem recebida.
 - Ah Sr. Oliv... digo, Oliver. Você é o padrinho do meu casamento, nos conhecemos desde quando era pequena, e tenho-lhe como um irmão, mas é que eu respeito a hierarquia de meus superiores. Enquanto às férias, não posso aceitar, principalmente agora qu... -sua voz embargou, qualquer pessoa que soubesse o mínimo de linguagem corporal perceberia que Lourdes não está nada bem, relutou e prosseguiu com a primeira coisa que surgiu em sua mente- ...que eu estou falando sobre o meu pintor favorito, Van Gogh. A loucura sempre esteve tão presente em minha vida, e eu sou fascinada por ela, e por ele. E seguindo o roteiro, depois dele é sobre Frida Kahlo que é quase que um arquétipo para mim. Não posso abandonar meu trabalho agora para tirar férias - disse Lourdes quase como quem suplica.
  - Querida, é para o seu bem, lhe fará bem, irei sugerir que o Sr. Bento não explane nada sobre a Frida Kahlo. Espero que aceite essas férias como um presente meu. Não posso aceitar que você tenha passado três anos trabalhando sem ao menos descansar. O Sr. Bento virá amanhã mesmo em seu lugar. Qualquer coisa me ligue, e aproveite bem seu tempo.
 Qualquer pessoa que soubesse o mínimo de psicologia, saberia neste momento que nada do que ela falasse mudaria sua escolha. Então só restava uma saída, já que ela conhecia psicologia comportamental muito bem:
 - Muito obrigada querido. Nem sei como lhe agradecer, espero que meus alunos não sintam minha falta nesse período - disse com um falso sorriso no rosto, que aprendeu com Duarte para encarar festas da alta sociedade, cujo detestava.
 - Eu que agradeço. Mande lembranças para o Dr. Duarte e diga que ele ainda me deve revanche no golf - falou com um olhar de soslaio quase virando totalmente a cadeira grande e giratória dos diretores.
 Oliver não viu, mas ela ainda ficou na sala 28 segundos e meio até que os minutos se quebrassem para que ela pudesse sair. Direcionou-se ao bebedouro dos alunos, e ali, matou sua fome e sua sede, bebeu tanta água, que poderia disputar com um camelo quem passaria mais tempo no deserto sem sentir sede. Não se assustem se caso ela ganhasse, mas como não apostou nada com ninguém, chegando em casa bebeu mais água. Mais um complexo que ela tem que aturar, não faz por mal. Vai ao banheiro, e retira toda água. Agora tem com o que distrair, manter-se purificada.
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É tão engraçado como dependemos tanto de uma pessoa, o outro torna-se parte de nós de uma maneira realmente muito engraçada. Personificamos nele todos os nossos ideais, nossas metas, nossos desejos que não conseguimos alcançar por alguma consequência do destino. Passamos a acreditar no ser que amamos mais do que a nós mesmos, não olhamos mais para nós. Saímos do centro e colocamos ele, idealizamos e endeusamos. O mais engraçado não é isto, o mais engraçado é quando somos trocados. Quando vemos nossas pernas, braços, coração, tripas serem arrancadas sem dó de nosso corpo. Não é hilário isto? Se eu pudesse simplificar para os leitores que nunca foram tirados do centro da importância da vida do outro para dar lugar a outra pessoa desconhecida, e que não sabem que dor se sente, usaria o seguinte exemplo:
"Estava tranquila em minha cozinha, bebendo um copo de suco. Quando me abaixo para colocar a jarra na parte inferior da geladeira. Sinto algo ser penetrado no centro de minhas costas, ao lado de minha coluna. Algo afiado, uma grande faca. Tento tornar-me de pé e a dor piora quando os músculos se contraem. Sinto o sangue quente escorrer em minhas costas e eu só consigo pensar em quem fez isto comigo. Acabo caindo no chão contraindo-me e abraçando meus joelhos, o que piora, pois os músculos se dilatam. Não há posição confortável quando se recebe uma facada nas costas! O pensamento se toma por perguntas. Por que fez isto? Foi uma vingança? Eu fiz algo de errado? Então, quando já se está arquejando no chão, aceitando a condição, é possível ver o rosto do responsável, e é a pessoa que você daria sua vida. E ele está com um sorriso apaixonado em seu rosto, está ele cego de paixão, por outra que não eu. Não consegue ver a gravidade que acabara de fazer. Quem em sã consciência mata outra pessoa com uma facada por trás, e consegue permanecer intacto e feliz enquanto se há uma pessoa arfando em seus pés desesperada por vida?"
Apesar do forte eufemismo, é mais ou menos assim que acontece.
Os efeitos colaterais de ser trocado envolvem: Perda total ou parcial da razão, perda da percepção de sensibilidade, queda de peso, queda de cabelo, queda. Reações adversas de origem gastrintestinal, como dispepsia, náusea, dor abdominal são as reações adversas mais frequentes. Foram observadas reações adversas menos frequentes como cefaleia, e reações alérgicas (como prurido, erupções cutâneas, urticária e angioedema), foram relatados, também, casos isolados de neuropatia periférica. Foram relatados casos insuficiência cardíaca. Especialmente em pacientes recebendo a notícia do abandono no intervalo de cerca de 1 mês, foram registrados casos de forte depressão, alucinações, tontura, insônia, instabilidade emocional. Há casos de tentativa de suicídio e suicídio ainda não comprovadas se pelo recebimento da notícia.
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Deita na cama exausta e tenta relaxar. Lembra da primeira vez que ele saiu de casa, pegou todas suas coisas também. Mas daquela vez ele olhou em seus olhos, disse que estava cansado e que iria dormir no hotel ao lado do Hospital Cardíaco Santa Casa, em que trabalhava. Ela se jogou ao chão, implorou para que ele não fosse, prometeu que mudaria, mesmo sabendo que quem deveria mudar era ele. Engoliu seu orgulho, mas mesmo com o drama digno de uma obra Shakespeariana ele se foi. Horas depois de se sentir impotente ela pegou o carro e se atirou a caminho do hotel em que ele se hospedara - Lourdes tem síndrome do pânico, mas naquele dia ela saiu, enfrentou seu medo mais sórdido. E mais uma vez se prostrou aos pés de Duarte que não esboçou nenhum sentimento. Naquele dia ela voltou de táxi, e ele voltou uma semana depois, arrependido e prometendo que nunca faria de novo. Ela lembrou da promessa feita, pois foi a primeira vez que ele ajoelhou no chão à sua frente, e faz nove anos! Lembrando disso ela correu, abriu a gaveta, pegou uma folha uma caneta e começou a desabafar fazendo a primeira carta de muitas, que posteriormente daria o nome de "Cartas diárias de superação":

"Meu amor, quanta falta tu fazes! Olho para os livros que restaram na estante, e já não tenho mais orgulho em tê-los, minha escova parece tão solitária sem a sua. Tenho saudade de dormir com você, tenho saudade de dormir. Depois que você partiu aqui nada faz sentido, e as que fazem me lembra você. Eu quero adentrar na tua mente, te fazer lembrar de mim, te fazer arrepender de ter me largado, te sacudir. Queria ter coragem de ir ao hospital simulando um ataque cardíaco para sujar teu nome e te humilhar na frente de todos, mas coragem não tenho e ainda te respeito muito. Não sei se você fez de propósito para caçoar do meu sofrimento, mas todos os nossos porta retratos ainda estão de pé, eles ainda ocupam a sala  inclusive lhe esperam para fazer sentido. Tentei apagar todos os seus registros, mas ainda sinto uma esperança tão grande que você só não esteja deslumbrado com essa menina. Comecei a rezar, depois da grande tristeza, tenho pedido sabedoria e compaixão para sua vida. Tudo aconteceu tão de repente, até antes de ontem estávamos tão bem. Queria ter visto teu rosto, teus olhos, queria decifrar tuas frases depois de minhas perguntas, queria decifrar tuas atitudes depois das minhas acusações. Só pra depois eu ficar me martirizando percebendo que não condiziam com o que você sempre disse como segredos nas noites escuras. Queria te fazer lembrar das promessas que você sempre me fez, que nunca me deixaria, que eu era o amor da sua vida, e que comigo até teria um filho. Eu sempre quis um filho! Você não deixou eu me despedir, não me deu a possibilidade de escolher nada. Estou jogada aqui nesta casa sem nada e sem ninguém. Poderia ter chamado alguns amigos para me embriagar, mas não tenho falado com eles porque você sempre disse que eles não me valorizavam como deveriam, os meus amigos passaram a ser os seus amigos chatos. Nem sei mais como se anda, como se respira. A maldição do pesadelo caiu sobre minha vida, o pouco que dormi sonhei contigo, com ela. Estou rasgada ao meio sem nenhum sentimento aparente, não me sinto, parece que em mim não moro mais. Tenho vontades constantes de bater minha cabeça contra a parede, mas sei que se fizer, não conseguirei mais parar. Eu não sei o que fazer da minha vida. Acho que vou começar a te escrever cartas de como eu estou me sentindo, mas sinto que minha terapeuta não acharia bacana na minha condição. Eu ainda Te Amo tanto e escrevo desesperada tentando manter a caneta em pé para não me debruçar no papel abraçando-o. Você não respondeu minha mensagem, fico imaginando o que vocês conversam. Corto em fiapos minha alma aos poucos pensando em vocês dois juntos, nos abraços que eram só meus, nos teus beijos que eram só meus, no teu corpo que era só meu. Agora nada tenho a não ser essa pertubação, vontade de gritar desesperada pelas ruas, entrando e saindo dos locais sem olhar o relógio. Provocar em mim repulsa de estar viva, queria ser a bruxa herege da Idade Média e ser queimada na praça pública, quero ser decapitada, quero levar um tiro no peito que sem sobra de dúvidas é menos doloroso que essa dor que carrego comigo. Mas quero que você fique bem se essa for a sua escolha, seja feliz e não se preocupe comigo, porque eu já estou perdida e não tenho planos para me encontrar. Te Amo para sempre. De sua eterna Lourdes"

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O maior medo que tinha não era de ser esquecida, mas de não ser lembrada. Fazia de tudo para deixar onde passasse, quem conhecesse, um pouco dela. Quando terminou de escrever, percebeu que estava chorando e não sabia o que fazer com aquele papel. Não sabia se enviava com um apelo oficial de desculpas listando tudo que pudesse lembrar do que fizera de errado nos anos todos em anexo, ou se simplesmente queimava. Achou tolice perder tanto tempo pensando em alguém que já não queria saber dela, que já tem outra e que a matou com uma facada em suas costas. Mas existem coisas nesta vida que fogem da capacidade de conseguir entender. Tolice não é perder tempo com tudo isso, mas de tentar entender o porque se perde tanto tempo com isso. Esquecer uma pessoa, terminar um relacionamento como terminou assim, como um coito interrompido, não se pode se esperar muito, se não muito sofrimento para quem foi deixado de lado na dança do amor.


   **********************Carta diária de superação do dia 18 de agosto*********************

O tempo agora é todo meu, tenho tempo de sobra. O que fazer com o tempo? Já andei tanto pela casa que poderia fazer uma maratona aqui mesmo comigo só. Se alguém por ventura viesse me visitar, veria no chão uma trincheira que abri de tanto caminhar pelos mesmos passos. O tédio insolente vem me lembrar que as horas não passam, porra! Por que as horas não passam? Já cacei os meus gatos imaginários que insistem em se esconderem debaixo dos cômodos mais improváveis, já relutei contra o sono que ainda não senti, já pintei todos os "ós" e "ás" desta carta que ainda nem terminei.
A ideia que tenho é que ainda tem muito mais tempo, eles se multiplicam, um minuto passa a ser dois, dois passam a ser quatro. Uma hora porém é a junção de todos os minutos multiplicados exponencialmente, uma loucura. Enquanto a mim, me resta somente matá-lo antes que ele me mate. Nunca achei que ficar comigo sozinha fosse algo tão chato, até começo a entender você e suas cobranças. Eu passei a beber tanta água, que não se admire se um dia você descobrir, por acaso, que morri de hiper hidratação, tornou-se um vício pela purificação catártica que você não entenderia. Como nunca entendeu todos os vícios, minhas manias, minha doença.

não existo aqui, nem além
acho que não estou
devo ser o esquecimento
da vida que passou
e algum anjo disse amém

Certa vez um aluno exclamou na sala de aula ao ver uma tela minha usada como exemplo de sombra e luz: "Professora, eu tenho medo de você entrar é em depressão" fazendo todos rirem sem propósito prévio aparente, também ri, mas pensei comigo mesma: "Não tenho medo de entrar em depressão, tenho medo de sair, não saberia viver sem uma antiga companheira de estrada".
Agora me encontro com medo, medo de entrar em uma doença psicológica que possa existir ainda não nomeada pior que a depressão, poderia eu ser o primeiro caso, poderia ela carregar meu nome "Doença de Lourdes". Cheguei na linha limítrofe da razão e da insensatez, que passei a fantasiar você aqui na sala sentado, fumando um malboro e ouvindo aquele velho jazz que tocou em nosso casamento. E é impossível negar, sempre lembro de como nossas coxas se enroscavam quando tocava aquele jazz, tua carne desnuda à mostra, o toque da ponta de teus dedos passeando sem rumo sobre meus cabelos e esquecendo-se em minha nuca, tão proposital quanto os olhos de fome que fazia quando sobre à penumbra me despia, tua voz rouca propagava-se tão tímida e lenta que hesitava se de veraz queria fazer-se ouvida, o aroma do teu sexo que exalava o quão me queria mais perto, quase que dentro, ou se através. O acalanto que meu coração fazia quando descansava tua cabeça em meus seios, que eram tão teus! A maneira como demonstrava satisfação quebrando o silêncio com súbitos suspiros, teus tapas quando me marcava a pele e teus dentes quando me marcava a alma. Hoje quando devaneio em noites insones, sobre o vazio massacrante de nossa cama, refaço as notas em minha mente daquele jazz que, me maltrata hoje tanto quanto um dia já preencheu uma vida inteira, e que hoje já não passa de súbitas recordações involuntárias, que não tem outro propósito se não dilacerar-me. E recolhendo meus cacos que esqueci pelo meio desta carta eu termino, com uma tristeza de pardal impossível, que não caberia te explicar pela incapacidade de sua compreensão distorcida de um apaixonado. Desculpa-me por ser este ser que carrega tanta tristeza e melancolia nas costas. Eu Ainda Te Amo. De sua dilacerada, Lourdes.

   **********************Carta diária de superação do dia 22 de agosto*********************

Sonhei contigo, usei a palavra sonho apesar de ter sido mesmo um pesadelo. Você vinha até a nossa casa com sua cara lavada cinicamente escupida por traços do mínimo de caráter. Parecia um pavão mostrando suas voluptuosas penas, andava exibindo o peito farto de ar, orgulhoso de se mostrar bem. Chamou meu nome e eu abri a porta, o que faria o mesmo fosse realidade. Deu-me um abraço apertado como se não houvesse saído de minha vida para morar com a garota, tornou-se de lado a mim e envolveu seu braço no meu lateralmente, fazendo com que ficássemos lado a lado e me impulsionou para que andássemos.
O que eu gosto nos sonhos, é que podemos ver situações que não aconteceriam ou que aconteceriam de perspectiva diferente, como uma espécie de plano subjetivo de um ângulo privilegiado do sonhador, encarando a si mesmo como um telespectador que assiste tudo sem ter lido anteriormente a sinopse da situação. E eu estava lá, ao seu lado envolvida por seu braço esquerdo sobre minhas costas e sua mão descansando em meu quadril me puxando para o que viria a ser uma conversa. Visto em primeiro plano em plano-sequência. Sentou-me na cadeira da sala de jantar e começou um intenso interrogatório sobre minha vida , tentou sugar de mim todas as informações possíveis, e eu me vi ali sentada a sua frente mentindo para todas as perguntas. Quanta vontade eu tive como espectadora de tomar o meu lugar no sonho e dar-lhe um tapa e perguntar o motivo de ter me abandonado, o motivo de estar tão bem em cima do meu sofrimento, o motivo de não ter me dado motivo algum. Mas bons dramas são assim mesmo, sempre tem uma cena no meio do filme que nos faz sentimos vontade de encarnar o personagem na situação limite para fazer o que achamos que faríamos, transformando um "A Summer Story" de Piers Haggard em um "Kill Bill" de Tarantino. E fiquei encarando você ali, esperando que soltasse algum desejo em reatar o que tivemos, de viés, só perguntava e demonstrava subliminalmente o quão estava bem sem mim. 
Igual aqueles suspenses chatos, que enquanto você assiste a mocinha indefesa cantarolando no banho fica gritando que o vilão está logo atrás da cortina com uma faca, e que vai atacar-lhe por já começar aquela musica repetitiva e frenética, eu gritei para mim no sonho: "Ele não te ama mais! Vai te dar outra facada, não ouve a música?" Mas não me ouvi, e continuei cantarolando mentalmente que queria que você me desse algum sinal, de contrapartida, me sugeriu que continuássemos amigos. Provavelmente se mais pessoas estivessem na minha perspectiva assistindo meu sonho já imaginariam o que aconteceria. Por que diabos mocinhas tem que serem tão tolas? Talvez preencham folhas de currículos com situações de incapacidade de autossuficiência que tiveram para serem contratadas como uma boa atriz. 
Você foi embora mais uma vez sem me permitir uma resposta plausível da situação, enfincando ainda mais a faca anteriormente cravada enquanto realidade. Não entendo porque não conseguimos acordar quando o sonho se torna um pesadelo, deveríamos ter uma mandala interna. Ficou mais uma vez teu cheiro impregnado na casa, depois que o drama tornou-se terror consegui despertar e senti-lo como se deveras estivesse passado por aqui. Esse é o único problema de perfumes, quando você vai teu cheiro fica. 
Parece que estou em uma espécie de jogo de casas de tabuleiro, quando pareço estar caminhando bem, pegando cartas que me levam para frente, ganhando bônus, conseguindo viver, me deparo com alguma discrepância que me remeta a você, o que me faz retroceder algumas casas. A unica coisa que queria mesmo era não ter cruzado em tua vida, se soubesse que o fim seria tão árduo assim, não teria aceitado entrar no jogo com você.

Lourdes.

   **********************Carta diária de superação do dia 13 de setembro*********************

Estranhei o vazio da cama, depois estranhei estranhar o vazio da cama, não seria a primeira vez que dormiria sozinha, já deveria ter me acostumado. Porém sua ausência era tão presente quanto esse nó que está travado em minha garganta, juntamente com esse arrependimentos de não ter escarrado em sua cara algumas verdades que merecias ouvir.
Tem feito frio ultimamente não é? Mandei desinstalar o ar-condicionado semana passada, mas mesmo assim o tempo continua estável e além do mais acabou de dar na tv, que a mínima para hoje é 17º e com grande probabilidade de chuva. O que seria uma formidável notícia para mim a exatamente um mês atrás, mas hoje já não quero mais nem pensar na hipótese de sentir mais frio. Depois que você saiu de casa, tudo tomou um aspecto friorento, acho que realmente o frio não foi feito para mim - o que vai de contra partida ao meu maior desejo de conhecer Bariloche. Lembra o quanto eu supliquei para que a nossa lua de mel fosse lá? E que não pudemos ir por conta da sua doença, Síndrome de Raynaud? Ao contrário de você, eu sempre amei o frio, mesmo não aproveitando-o por estar encasulada em mantas e mais mantas, mas era prazeroso ser aquecida por você debaixo de todo aquele casulo. Atualmente tenho plantado em mim uma pessoa interna que brota todos os dias frios, ela é insensível e não me perdoa, faz questão de trazer consigo todas as lembranças e infortúnios de dias quentes de que já não quero mais lembrar.
Quando mais nova na escola, não conseguia compreender o que era o "sentido figurado" das palavras, então foi dado-me o exemplo de "frio", acho que não tinha maturidade ainda para conseguir absorver a intensidade do significado figurativo das palavra. A verdade é que eu gostava e pronto, não queria saber de sentidos figurados que serviam pra estragar coisas que amo, mas a vida ensina, e da pior forma.
Me transformei naquilo que jamais imaginaria ser, se você acha que eu virei uma puta, sinto lhe informar, mas já até pensei na hipótese depois que você foi embora, afinal de contas, não seria muito diferente, já que você fez eu me sentir filha de uma esses anos todos. Me transformei em uma mulher com amor próprio. Quem diria que eu, Lourdes Maria, a pessoa com o maior complexo de inferioridade que se possa existir nas clínicas psiquiátricas por onde andei, poderia um dia autoafirmar que se ama? Acho que caiu a ficha que eu preciso correr atrás do tempo que perdi com você, minha terapeuta disse que me amando é o primeiro passo. O segundo passo é não mentir. Obedecendo o segundo passo então, tenho que lhe falar a verdade, não me amo ainda! Mas juro que tenho tentado, tenho me elogiado quando me vejo no espelho, e tenho falado baixinho "Eu me amo" antes de dormir, às vezes sai um ato falho, acabo trocando o "me" pelo "te" como era de costume eu falar nestes anos todos para você, mas me corrijo prontamente. Como tenho tentado também não escrever essas malditas cartas onde tenho que te disse o quanto sou infeliz sozinha nessa casa que tem tanto de ti. Prefiro então mentir para minha terapeuta, afirmando que parei com esse vício. Próxima semana ela disse que vai testar um medicamento, e eu estou um pouco insegura, sinto-me exatamente como segundos antes que viria a entrar na capela em que casamos e encarei o altar, aquela sensação de ansiedade, misturada com medo do incerto. Sempre disse que nunca tomaria remédios controlados, não faço o estilo "tarja preta", mas não posso negar que não tenho estado bem esses dias. Perdão pelos remédios, nunca quis precisar. De sua menina Lourdes.

   **********************Carta diária de superação do dia 27 de setembro*********************

Na falta de vermelho pintei a boca de vinho, maldito vinho que me fez estar escrevendo-te esta carta, desconsidere então eventuais erros grotescos de ortografia ou de situações fantasiosas, eu realmente não estou bem! - afinal de contas escrever e lembrar de ti depois de tantos desencontros e incompatibilidades de pensamentos é a maior prova disso - a verdade é que o vinho que pintei meus lábios, que por falta de seus beijos já se tomaram virgens por si só, e o vinho ingerido que era tão intenso quanto a cor que carregava em minha boca, fez-me lembrar de nosso primeiro encontro a uma década e meia atrás, então resolvi trajar aquele vestido preto com pedras pratas, que comprei mas que nunca tive a oportunidade de usar porque você achava curto demais, e sinto lhe informar, eu estava ma-ra-vi-lho-sa, inclusive me caiu bem melhor agora do que no dia que comprei, lembra daquele salto que me fazia ficar mais alta e que você também me proibia de calçar? Então, usei-o, e pela primeira vez, mesmo não estando aqui, me senti realmente mais alta que você, por fim coloquei aqueles velhos brincos que você me deu no nosso primeiro ano de namoro e que eu prometi que nunca mais iria usar, pois bem, detesto descumprir promessas!
Depois que me trajei com tudo aquilo que ti lembrava, resolvi transpassar a barreira da minha insegurança de sair sozinha, lembra? Pois é! Confesso que no início foi difícil, não tinha pensado ainda para onde iria, nem se havia dinheiro o bastante, mas consegui, o trânsito estava horrível.
No rádio começou a tocar "Atrás da porta" do Chico, maldita musica! Desejei capotar o carro ou cometer haraquiri, mas ao invés disso, borrei meus olhos, os mesmos tal quais viram os teus com um olhar como de quem diz adeus, como dizia a canção - merda, havia passado horas fazendo a maquiagem, reaprendi a passar sombra, lápis, delineador, corretivo, base e todas essas coisas que você sempre achou supérfluo, mas, que se me visse no futuro/hoje, teria a certeza de que não. Resolvi parar o carro naquele bar que eu sempre detestei quando você me levava aos domingos, e reconheço, ele realmente tem uma beleza arquitetônica barroca como você sempre afirmava, e, que pelo meu enfado preconceituoso de detestar bares, não me fez perceber, e agora entendo também o real motivo pelo qual você sempre abominava meus vestidos curtos. Passei horas em êxtase ouvindo aquelas notas do piano enquanto olhava para o meu reflexo na taça de vinho, mais vinho, mais vinho, mas venho te dizer por este manuscrito, que já me arrependo de ter o começado, pois descumpro mais uma de minhas promessas, que é não lembrar mais de ti, e eu detesto descumprir promessas!
Resolvi retornar a minha casa, e antes de sair, aos assobios e aos pedidos de me levarem embora pelos machos embriagados, que inquietam-se ao sentir o cheiro que exala do corpo de uma fêmea que suplica pelo cio, vi você espelhado em fragmentos de todos os que ali estavam, não sei se ti convém, mas recusei todos eles inclusive ojeriza, decidi vir sozinha e me arrependo, enquanto vinha, até pensei em revir, pegar pelo braço o primeiro dos tais colocar em meu carro e fazê-lo de refém sexual, mas não, chega de fantasmas em minha vida.
Apesar de saber que você não vai chegar até esse ponto do meu pequeno alfarrábio confidencial, quero ainda assim continuar escrevendo minha primeira experiência sem ti, e te mostrar que ainda posso ser bem feliz, queria que estivesse aqui agora, e visse o quão eu estou refeita, mas não hoje! Esqueci de tirar aquela sua foto do porta retrato, que continua intacto e virado para a sala de jantar em frente a mesa onde estou, seu olhar não me perdoa, mesmo eu tenho a pureza dos anjos que nunca fizeram nada errôneo, sua face em formato quadrado que torna seu queixo mais largo, sua barba por fazer por falta de tempo, seus cílios volumosos e que fazem uma curvatura quase que perfeita, seu cabelo grisalho encanecido pela idade que desce até sua testa e quase cobre seu sinal, sua pupila dilatada pelo flash que ativou milésimo de segundo antes de registrar a foto que me amedronta as refeições, o que me ocasionou uma perda considerável de peso, mas prometi que não vou mais parar de comer, e eu detesto descumprir minhas promessas!
O acumulo de sentimentos que guardo está me sufocando, não sei explicar ao certo, e eu não queria sentir esse engasgo na garganta, essa vontade louca de começar uma vida nova, mas não posso, semana que vem é seu aniversário, 2 de outubro, e ainda é tudo tão recente, estou aprendendo a andar com novas pernas, nem sei se saberei passar o seu dia natalício sem você, acho que comprarei um gato, já que a sua alergia não me impede mais, preciso de companhia, as vezes o silêncio me deixa alucinada, não vejo a hora das minhas férias acabar.
Já sinto a minha lucidez e acho que estou com sono, o galo já me avisou que está prestes a amanhecer - ainda não me acostumei com a rotina de dormir a noite, você conseguiu plantar em mim a filosofia de que a noite não foi feita para dormir - e essa é o fim de mais uma carta que te escrevo, mas que não te remeto, e rasgo e entrego para o fogo fazer bom uso, não por medo de não receber respostas, ou pela ideia ilusória que tens outro alguém que por curiosidade, venha a ler antes de ti, mas é que eu prometi para mim mesma que te enviar uma carta, seria a ultima coisa que faria em minha vida, e eu detesto descumprir minhas promessas!
PS: Te Amo

   **********************Carta diária de superação do dia 29 de setembro*********************

Mais um dia ou seria menos um dia? De todas as loucas sou a mais, agarrei-me em mim e puxei meu corpo pra baixo de minha sombra, os remédios fazem efeitos e eu quem sou? Um ser hospitalar oblongo e sem alma? Roguei em mim uma praga cruel, a praga da solidão, irreversível. Grito ininterruptamente em silêncio não só enquanto escrevo para ti, mas quando te vejo vindo a noite, me dando um beijo na testa e me chamando para pular da janela com você, fazendo a condolência de me permitir ir primeiro. Se eu tivesse cianureto ou estivesse na ponte Golden Gate seria tudo tão mais poético. Estamparia meu rosto as capas de revistas, uma página inteira de jornal? Ou fariam todos como você, esquecer-me-iam por uma simples paixão aguda repentina? As vozes andam constantes, posso ouvir elas me chamarem de tola, de ignóbil, mandam eu contar os segundos que se passam enquanto você não volta, obedeci uma vez e fiquei quatro horas olhando o relógio sem poder parar até entrar em transe. Deram catorze mil e quatrocentos segundos, que contei todos sem desviar a atenção. Já não saio, a minha terapeuta vem aqui em casa, estou tomando os remédios indicados. Levou tudo que faria eu poder escrever, cadernos, folhas, lápis, canetas. Escrevo-te hoje usando minhas tintas e uma tela, já que não tem mais outra funcionalidade além de ocupar espaço. A vida não me tem mais sentido algum e não sei porque ainda vivo, talvez para ocupar o espaço, nunca quis "ocupar".  Sinto sua falta aqui, me apoiando quando mais preciso de ti.
Sempre Te Amo, Lourdes.

   **********************Carta diária de superação do dia 1 de outubro***********************

Sabe aquele sentimento indeciso? Aquela coisa de não saber o que se está sentindo? Eu não consigo discernir, não consigo falar para você o que é, então não cobro que entenda. Desta vez não sou eu quem escrevo-lhe, permiti que a tristeza pudesse tomar conta de minhas mãos não firmes enquanto pego esta caneta. Peço antes que termine, desculpas se esta houver mais melancolia que as demais, minha cabeça dói muito. A verdade é que eu não estou me sentindo, tenho tentado te esquecer, mas parece que você mora em uma casca rígida de ser extraída de mim. Deixei de ter hábitos de higiene, faz dias que não tomo banho, acho desnecessário perder tempo limpando um corpo sem uso. Prefiro tentar purificar-me internamente. Comecei de novo a cantar mantras, mas nunca termino a sessão, pois tua imagem me toma de novo a cabeça falando que acha isso tudo muito tolo, tudo muito infeliz, como sempre interrompia-me.

Privar-me-ei dos instintos de pensar em ti
Já que quando tomas conta dos meus singelos
Não me deixas privar mais nada

Quero que seja consumado o mais puro sentimento
E que floresça onde for infértil todo o alento

A carta que deixaste de despedida não rasguei
Cada palavra, frase e ponto
Carrego comigo como um soco que se da no estômago

Confesso que regredi alguns dias na luta diária de superação, e que eu andei te perseguindo. Fui ontem ao hospital para te ver entrar, pra te ver, saber como anda. Acordei cinco horas, ou melhor, a ansiedade do ato não me deixou dormir, levantei cinco horas. Sei bem que você entra as sete e dez pontualmente, mas não queria que por discrepância do destino, perdesse a hora e não te visse, e além do mais fui andando. Fiquei ali ao lado da árvore em frente, próximo ao estacionamento dos táxis. Esperando, esperando, esperando, quase como o Pedro pedreiro que espera o trem que já vem na musica do Chico Buarque. Como o desejado, te vi adentrar aquele ambiente hostil e sujo. Você me pareceu tão bem, radiante de felicidade. Mesmo a um míope que te visse ao longe, perceberia sua áurea iluminando o caminho que se seguia. Seu sorriso apaixonado, sua pele rejuvenescida, aparenta estar mais novo, mais forte, viril. Te ver assim, não me fez bem, me senti como uma espécie de âncora que esses anos todos te bloqueou de navegar a outros mares. Te ver bem me deu uma vontade de ir até você e te fazer algumas perguntas, te cobrar algumas explicações com o dedo a riste, mas não quero que me vejas na situação que estou. Meus olhos estão fundos o que ressaltam minhas olheiras, emagreci cerca de sete quilos, ando fraca e com os ombros retraídos, não tomo mais banho. A árvore que você plantou em meu coração está crescida, já tem folhas consideráveis, cada dia esmaga mais meu peito e as raízes não me deixam respirar com a frequência regular. Vi você saindo do carro em passos largos, quase que correndo para vê-la, como se cada minuto longe dela representasse uma diminuição do seu tempo vital. Não me aguentei, achando que minhas glândulas lacrimais estariam tão seca quanto o sertão por já ter chorado lágrimas de uma vida inteira, acabei me surpreendendo quando elas brotaram de meu rosto, sorte que os óculos escuros não me permitiram mostrar meu estado de significância para o mundo. Peguei um táxi e como um lixo que direciona-se ao aterro, vim para casa.
Quando cheguei, corri para o banheiro pegando no caminho a máquina de cortar cabelo e joguei no lixo não só minha vaidade, mas também minha razão. Bati minha cabeça pelada em corte irregular na porta do banheiro, esperando que em alguma das fortes porradas perdesse a memória, a consciência. Queria apenas te esquecer, nem que para isso a consequência fosse esquecer de todo o resto. O que eu mais queria mesmo era ser um ser hospitalar, vegetar com uma morte cerebral, mas ao invés disso desmaiei. E quando acordei não sei quantas horas depois, não sei como, porquê, me veio essa vontade incontrolável de te escrever. Essa necessidade que tenho de te mostrar que você é importante para mim, e que sem você estou definhando em escalas catastróficas, apesar de saber que você não lê porque nunca te destinei nada, me contenta esse único contato que tenho contigo, mesmo que fantasioso por minha parte. Sei que essa fase passará, porque sou devota do tempo e minha padroeira sempre foi a superação, afinal de contas, se estou viva até hoje carregando minha depressão e as vezes deixando ela me carregar é porque no fundo, o Santo Tempo faz juízo a sua posição em minha vida. Ainda Te Amo, ainda te espero. Se quiser voltar para mim, coloquei mais uma chave debaixo do tapete, para que encontre mais rápido. Te Amo, e me desculpa por ter sido a âncora de seu navio.

*******************************NOTA DO AUTOR*********************************

Antes de mais nada peço desculpa pela intromissão, não estava em meus planos narrar entre as cartas de Lourdes, posso estar quebrando um ciclo mas é de extrema importância pelo caráter elucidativo. Lurdes é uma mulher cheio de neuroses, manias e depressiva. Antes de começar um relacionamento com Duarte ainda moça, ela era muito pior, acreditava-se que ela sofria de uma espécie de histeria, e que casando-se resolveria o problema. Duarte era um jovem bem aparentado, vindo de uma família rica, e sempre gostou de Lourdes. O encontro dos dois aconteceu bem antes da adolescência, ainda bebês, a mãe de Lourdes, Ana, trabalhava como doméstica na casa de Leonor, mãe de Duarte, e logo as duas ficaram grávidas no espaço de tempo de dois anos. A pedidos de Leonor, Ana sempre levava sua filha para brincar com Duarte, e a amizade veio crescendo junto com eles desde então.
Lourdes via em Duarte a salvação para todos os seus problemas, seu T.O.C., sua depressão, seu complexo de inferioridade... e até foi mesmo para ela durante o tempo em que estiveram casados, como uma dose diária de placebo que só percebeu a sua ineficácia quando ele a trocou, saiu de sua vida deixando apenas uma carta omitindo muitos fatos cruciais para uma boa interpretação.

Então vai e leva consigo outros sete espíritos piores do que ele e, entretanto, habitam ali; e o último estado desse homem vem a ser pior do que o primeiro. Assim há de acontecer também a esta geração perversa. Mateus 12:45

Essa passagem bíblica se encaixa para a narrativa como um exemplo formidável. Ela agora, achando que havia se livrado de algumas tristezas e pensamentos, sente tomada por outros sete piores sentimentos, sente-se fraca e sem chão. Talvez você, leitor, deva estar achando Lourdes profunda demais, doentia demais, visceral demais, mas acontece que ela viveu para Duarte a vida toda. Veja o que ela escreveu para ele no seu décimo aniversário de casamento:
"Eu te amo como um afogado que se encontra em seus últimos segundos de vida, que depois de acreditar que não aguentaria mais debaixo d'água, surpreende-se que ainda consegue pensar, e desesperadamente pensa somente em respirar e nada mais. Eu estou afogando o tempo todo, e eu preciso de ti como o afogado precisa do ar para sobreviver, o desespero da espera embaixo da água em seus últimos segundos é o amor que sinto. Quero ficar no teu corpo feito tatuagem, e nunca mais sair, você é meu sol, minha mãe, meu deus. Te amo. De sua eterna Lourdes"
Deixou em sua maleta um pouco antes de beijar o papel. Quando se ama uma pessoa de verdade, não é fácil perdê-la, se você acha mesmo que Lourdes está sendo extremista demais, peço que tente entendê-la, uma poeta artística, que acredita no amor eterno, vendo-se sem ninguém, vendo-se sem a pessoa que jamais imaginaria sem.
Ah amigo leitor, se essas particularidades do coração fossem tão fáceis de se resolverem, o pobre Bentinho não entraria em estado de insanidade por causa de Capitu, concordam?

****************Carta diária de superação de uma terça feira de outubro******************

Hoje resolvi te matar, recolhi tudo o que poderia me lembrar você e toquei fogo. Nosso álbum de casamento, seus porta retratos, os presentes que me destes tudo foi carbonizado, afinal, Maquiavel estava certo ao afirmar em O Príncipe que "Os fins justificavam os meios", por isso resolvi te matar para continuar vivendo. Como em um corte lacaniano, cessei meu sofrimento abruptamente no seu apogeu, para dar espaço ao catarse que mudará minha vida. Observei o fogo e o poder que ele tem de destruição, anos e anos de sorrisos, declarações, toda a vida sendo destruída em poucos segundos. A chama que ele provocou tão convidativa, pareciam braços flamejantes clamando por um abraço, quase fui entregar-me a ele num ato de aceitação de afeto, mas sou curiosa. Só não me matei até hoje pela curiosidade que tenho do que a vida me reserva. Nunca soube viver um dia de cada vez, apesar de sempre aconselhar aos que esperavam comigo nas longas horas para a terapia. Se o gato tivesse a mesma curiosidade que eu, não teria deixado a morte chegar até ele, é tão mais instigante esperar da vida do que da morte.
Antes que o fogo pudesse terminar seu papel funcional a ele destinado, o telefone toca, e de curiosidade quase me contradigo quando dou um pulo e saio correndo quase escorregando no álcool que chutei sem querer quando levantei abruptamente, na esperança que no outro lado da linha fosse você, e dependendo do que quisesse de repente pudesse salvar algo que o fogo ainda não tocou. Toda expectativa para nada, quem me ligou foi a Luisa, vice presidente da entidade, me perguntando os motivos dos adiamentos das reuniões e me perguntando por você.  Respondi claro, que eu estava passando por uma crise existencial, mas não consegui falar para ela que você havia morrido, mas que continuava vivo, desejei que você estivesse morto de verdade só para não ter que a explicar como eu o matei, então engoli qualquer coisa que pensei falar sobre você, e o resultado foi um tímido "é" que tenho dúvidas se se fez audível. Concedi a ela depois das desculpas pelos adiantamentos todos os dados bancários e burocráticos da entidade, e concebi a ela o cargo de presidente chefe, sabendo que ela tem potencial e ama todas as crianças da casa.
Quando desliguei o telefone confesso que escorreu uma lágrima ao ouvir a voz de outra pessoa do mundo real que não minha psicanalista, percebi que enquanto estou aqui procrastinando e perdendo tempo deitada na cama fingindo para mim mesma estar dormindo, as pessoas lá fora estão vivendo, e pensei de novo como você estava vivendo, mas eu te matei hoje Duarte e não posso colocar você no meu presente nem no meu futuro. O que soa um tanto quanto contraditório, porque estou perdida no espaço e no tempo e nem sei que dia é hoje, apenas sei que é uma terça-feira de outubro, mas não sei exato o dia nem a hora e não tenho interesse em saber. Voltei para os fundos da casa para olhar como estava o ritual da queima e tudo já estava como imaginei, negro.
Recebi uma carta do Sr. Oliver dizendo que o governo aceitou o pedido de aposentadoria que ele havia enviado, e que eu continuo tendo livre acesso à escola para dar aulas se ainda quisesse, terminou ele com "Um abraço terno ao meu casal favorito, Oliver". Senti vontade de remeter a ele uma carta xingando-o por ter enviado ao governo um pedido de aposentadoria sem o meu consentimento, então depois com a cabeça fria pensei em mandar uma carta agradecendo e informando sua morte, contudo, a ele eu não saberia mesmo como explanar o seu estado morto/vivo, como eu desejei que você estivesse morto de verdade. Então resolvi não fazer nada, se bem que poderia eu ficar com o Sr. Oliver, sabendo que ele é solteiro, não tem filhos, tem a minha idade e você sempre detestou ele por achar que ele era fascinado em mim, pensamentos catastróficos me tomou a mente e não pensei mais na hipótese. Não daria certo, claro que não daria, me sentiria suja e acharia que seria uma traição contra você, pelas promessas que fiz de sempre te amar, não conseguiria reproduzir para outros se não unicamente para você.
Tenho esquecido de tomar os remédios e amanhã receberei a unica visita que vem a mim, me cobrar explicações pelo qual raspei minha cabeça e o motivo da minha magreza, e do meu estado deplorável, amanhã preciso tomar banho, hoje não! Estou com um mal pressentimento, resolvi te ressuscitar para te escrever esta carta já que me sinto bem em falar com você, é melhor que os remédios tarja preta que ando tomando, são tantos que eles servem como meu café da manhã quando eu os lembro de tomar.
Se um dia você chegar a ler esta carta em especial, quando você tiver voltado para mim e ver ela perdida na gaveta enquanto eu estiver fora, saiba que nunca te matei de verdade, tudo foi uma espécie de sacrifício necessário ou autopunição por não conseguir ser ela e não ter as qualidades dela. De qualquer forma, vivo ou morto Te Amo.
De sua eterna Lourdes.