Enfeita meu colo o colar de uma tênue corda alaranjada, uma gravata que guarnece e maquila meu total desespero. Sobre a cadeira, em pé, me sinto mais alta e mais eminente, quase narcisista, quase megalomaníaca. Borro meu batom com o rosto de minha mão suada e sinto o vermelho-gosto-sangue sucumbir em minha boca seca. O resto que faço não cobre o drama. Uso meu melhor vestido modelado especialmente para meu corpo e para esta data especial. É especial para mim. O salto preto e de maior tamanho que tenho, as vezes, faz eu adiantar uma possível queda não ensaiada, e quase tropeço. Acho poético o cordão que abraça meu pescoço, lembrando freudicamente o cordão que ligava-me a minha mãe, este segundo pelo umbigo, quando vim ao mundo. Poderia usar a arma que descansa em minha gaveta, guardada para uma dessas ocasiões cujo brincar de ser poeta não me salva mais, mas não posso sujar o tapete de sangue. Ou até mesmo uma faca, que por um descuido gramatical não se tornou um verbo de ação e poderia me custar uma orelha, ou duas, ou três, mas não posso sujar meu tapete de sangue.
Meus pensamentos fluem com naturalidade e lucidez. Seguro a caneta e rabisco tudo o que irá ocorrer, como uma visão de um futuro próximo neste papel em uma imagem digna de abertura de algum filme - dez segundos com a câmera parada em um plano americano e aproximando-se para um plano fechado a se perder em meus olhos de desespero em um plano detalhe - para depois do corte abrupto e dois segundos de tela preta, em plano sequência, explicar o motivo de tudo. Já a cena final é a mesma, porém, desta vez estou a ler o rascunho, ao fundo, um piano triste me acompanha - a câmera faz o revés, saindo do plano detalhe em meus lábios, que pronunciam as ultimas palavras enquanto viva, para o plano médio. A câmera estaciona calmamente ali, em minha frente. Acabo a leitura. Olho para você através da lente, que espera aflito le grand finale. Movimento levemente as articulações do meu joelho para frente. Pode-se observar meu pé direito a convulsionar com o frio instantâneo e inexplicável. E, neste momento o que move é apenas meu pé direito posto à riste. Fecho meus olhos. O piano silencia gradualmente. A expectativa do que se seguirá cresce e eu não penso mais em nada. Aos que leem, arrastam os olhos rápidos à espera da frase exata que se encaixará perfeitamente na suposição já anunciada. Aos que assistem, roem as unhas em um ato ansioso e mecânico. A mim, canto mentalmente uma canção de ninar que não tenho certeza se uma das primeiras que ouvi em vida. "Nan, nan, nan, nan, dorme filhinha, do meu coração, deite o seu sono, sobre esta canção". Em um impulso, jogo meu corpo para frente enquanto com a perna cujo me apoiava empurra a cadeira que cai. Eu escorrego no vazio que ficou entre a cadeira e o chão até ser agarrada pelo pescoço. Estou suspensa agora e abraçada. Sinto um aperto em todo o corpo, que me comprime em um estado de felicidade e acefalia. Me debato, não por arrependimento, mas para tornar a cena mais emocionante e visceral. Premência de me salvar não havia, mas me salvei. Depois de dois minutos de agitação cenográfica acompanhada novamente pelo som do piano - desta vez mais acelerado e grave - cedo à morte e aceito minha escolha. O filme vai escurecendo gradualmente sobre minha imagem intacta em um fade out até não se ver mais nada além da ultima frase que antecederia o "Fim", "Agora descanso de meus pensamentos mais sórdidos sobre meus pensamentos que nunca tive respostas".
Nenhum comentário:
Postar um comentário