Num instante, fez se do esquecimento a lembrança, chegou subitamente à memória o riso dela, que ele prometeu jamais esquecer, como prometeu também não esquecer de muitas outras coisas que com o passar dos dias, vão se encravando cada vez mais debaixo do tapete da memória. Como a primeira vez que andou na roda gigante, como a quantidade de figurinhas que havia em sua coleção da copa de 90, como o cheiro do bolo de baunilha que só minha mãe sabia fazer. Mas a risada que ela tinha, ele prometeu a si mesmo, nunca esquecer. E foi assim que se deu seus últimos minutos de vida, em um hospital com estruturas precárias, e dores na consciência que de longe era a pior de todas suas dores. Ecoou em seus tímpanos a risada de sua amada, como quem vinha envolver-lhe em seus braços e guiá-lo para o caminho que deveria seguir, seu ultimo suspiro depois de tantas ofegações, foi de paz. Oscilou em sua cabeça o barulho do monitor cardíaco que apitava insolentemente e a voz aveludada que só ela tinha, cada som que seus lábios produziam era como o cantar de um querubim, imaginando que se um anjo cantasse, seria aquele som que ele produziria. Entrava pelo orifício de seus ouvidos e o preenchia cada vez mais fundo, mas logo fez da lembrança a pergunta: - Para onde vou? E repetia sem parar. Eu vou pro céu? Eu vou pro céu? Eu vou pro céu?
Como se fosse uma espécie de mantra dos desesperados.
Em vida sempre soube que o céu era a morada dos mais ''bem-aventurados'' e ele estava longe de estar entre os mais queridinhos de Deus. A duvida penetrou em seu consciente de tal forma que agora ele estava ali parado e perplexo, pesando em tudo que fez enquanto vivo. Percebeu que nada poderia fazer mediante as suas maldades. Tião do capeta, como era chamado, era o pião mais sem coração que existiu no nordeste do Ceará. Matava bezerro recém parido com agulha furando-lhe dos olhos até o coração, apenas porque gostava da maneira como o bicho se contorcia, e o grunhido que para ele era uma sinfonia acalentadora.
Sempre detestou afeto, ou melhor, quase sempre. Depois que sua mãe morreu por envenenamento, ele passou a ter o ódio como companheiro de vida. Com exceção dela, Mariana, a dona da voz mais doce que os seus ouvidos já ouviram, e de uma beleza estonteante, cabelo dourado tão delicado que voava com o vento, sem rumo, e cobria parte de seu ombro. Sua pele era clara, apesar do sol que tomava diariamente cuidando da horta, usava sempre um longo vestido que escondia seu corpo, não por vergonha, mas pelo prazer de ver o Tião a olhar e imaginar como seria debaixo daqueles panos, o vestido e ela era quase um só de tão íntimos. Seus pés desnudos beijavam o chão sem recato. Seus seios recolhidamente envergonhados pela idade, brotavam devagar e sem pressa. Seu rosto dominado por pequenas sardas faziam um desenho minucioso, quase que feito pela mão de Deus. Seu nariz tinha uma curvatura perfeita e provavelmente invejável pelas donzelas da cidade, os cílios que guarnecem a beira de suas pálpebras parecem adornar cada milimetro de seus olhos, seus olhos de quem come a alma. Olhava para tudo, parecia uma detetive de pequenos detalhes, e olhava principalmente para dentro dos olhos de Tião, que eram negros como a noite sem lua. Ela passava horas o encarando, tentando conhecer a fundo aquele pião que chamava tanto a atenção de todas as moças próximo a Fazenda Quatro Rios, onde moravam.
Tião tinha a voz forte e potente, o rebanho todo da fazenda o atendia de imediato, unicamente por medo. Tinha o cabelo escuro, na altura da nuca, que sem precisar usar pasta ou gel apresentava um penteado quase que impecável. Sua pele era avermelhada bronzeada pelo sol. Era robusto, vigoroso, mostrava seus músculos sem pudor em camisas de mangas cortadas, camisetas xadrez com botões abertos ou na maioria das vezes descamisado, não porque fizesse calor, mas queria mesmo que Mariana o olhasse e o desejasse. Seu peitoral carregava o fruto de anos de trabalho árduo, fortificado, petrificado. Sua feição era sadia, entretanto aparentava-se sempre exasperado, como se carregasse o sangue de algum animal peçonhento em suas veias. Seu nariz era adunco, voltado para seu cavanhaque. Sua sobrancelha era grossa e mais baixa que o normal, um pouco a cima de seus olhos. Seus olhos escuros como a noite sem lua. Olhar intruso que parecia querer muito mais que apenas observar. Pegava-se olhando entre uma atividade e outra na Fazenda Quatro Rios para Mariana.
Tião era filho único de Maria das Graças e de Benedito Moura. Seu pai morreu no dia que nasceu por um ataque fulminante depois de uma briga com Estevão, e sua mãe à duas semanas misteriosamente, fato que o tornara agora o mais antigo empregado de Estevão. Estevão pai de Mariana e de Cesar. Mariana por sua vez filha mais nova, dezessete anos, Cesar trinta e três, um ano mais novo que Tião.
Nenhum comentário:
Postar um comentário